quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Monsenhor Murilo, o radialista - Por Jota Alcides


Uma releitura da histórica encíclica Populorum Progressio, do papa Paulo VI, quase 50 anos depois de sua publicação, em 27 de março de 1967, permite entender melhor o papel do célebre vigário do Juazeiro do Norte, Padre Murilo de Sá Barrreto. Contém a encíclica duas verdades: que a Igreja inteira, em todo o seu ser e agir, quando anuncia, celebra e atua na caridade, procura promover o desenvolvimento integral do homem; e que o autêntico desenvolvimento do homem diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em todas as suas dimensões. Conectadas, as duas verdades trazem um grande ensinamento social: reafirma a exigência imprescindível do Evangelho para a construção da sociedade com liberdade e justiça, na perspectiva ideal e histórica de uma civilização animada pelo amor, sobretudo aos mais necessitados. Com apenas dez anos de sacerdócio, em 1967, Padre Murilo já vinha nesse rumo apostólico pois seguia o mesmo caminho do Padre Cícero que dedicou sua vida aos mais pobres e miseráveis do Nordeste. Pároco de Nossa Senhora das Dores, Vigário dos Romeiros, Padre Romeiro, Vigário do Nordeste. É assim que o saudoso e querido Padre Murilo do Juazeiro ficou e é conhecido em todo o Nordeste do Brasil. Tão estimado e tão amado, parecendo insubstituível, que até hoje, 11 anos depois que ele se foi, 16 padres já foram nomeados seu sucessor, mas nenhum esquentou a cadeira. Até o bispo de Crato, Fernando Panico, percebendo a figura gigantesca do Padre Murilo venerada em todo o Nordeste, tentou ocupar o lugar dele, mas cometeu erros e ao invés de conquistar fieis, fez foi ganhar inimigos. O que explica isso? Padre Murilo cumpriu fiel, rigorosa e generosamente, sua missão vocacionada no Ministério de Deus, acolhendo fraternalmente milhões de nordestinos, sobretudo os mais sofridos, desamparados e humilhados. Seguiu São Tomás de Aquino: "Uma coisa não é Justa porque Deus quer, nas Deus quer a que é Justa". Mas, Padre Murilo enquanto sacerdote é um livro aberto conhecido de todo mundo. Falta, porém, nesse livro, uma página sobre sua segunda vocação: Padre Murilo de Sá Barreto foi radialista. Brilhou como tal no Juazeiro do Meu Tempo, época de ouro do rádio no Cariri e depois dela até a morte em 2005. Comunicador de massas, gostava de falar aos microfones, gostava de ouvir noticiários do rádio, gostava de dar entrevistas, alegrava-se em ver a Santa Missa transmitida pelo rádio, prestigiava eventos das emissoras de rádio quando convidado, escrevia com dedicação, carinho e sabedoria suas crônicas(Dimensões do Cotidiano) para a Rádio Progresso, gostava muito dos radialistas do Juazeiro e sentia-se um deles. Como prova do seu espírito de radiaista, seus dois maiores amigos, de estreitíssima fraternidade, eram radialistas: Daniel Walker e José Carlos Pimentel. Eles se consultavam, se informavam e se atualizavam diariamente com uma afinidade tão grande raramente encontrada em irmãos. Sentiam-se entre si "irmãos adquiridos". Confiança mútua era tão profunda que, certa vez, Padre Murilo precisou viajar por uma semana e entregou as chaves da igreja e do cofre para Pimentel ficar administrando os problemas que surgissem. Pouca gente sabe, mas todo sábado os três iam relaxar num agradável sítio em Palmeirinha, hoje bairro do Juazeiro. Era um encontro descontraído de três intelectuais que compartilhavam idéias, ideais, preocupações, perturbações, aspirações, emoções, tristezas e alegrias, inclusive esportivas, pois Padre Murilo era torcedor do Vasco. Era uma amizade tão verdadeira e profunda que os três se entendiam entre si só pelo gesto, pelo olhar ou pelo tom da voz. Esse encontro semanal proporcionava enriquecimento recíproco. Padre Murilo se enriquecia com as análises de Daniel e Pimentel sobre a atualidade, e os dois se enriqueciam com a visão lúcida e evangélica de Padre Murilo.Do encontro saiam os três preparados para novos olhares durante a nova semana e no sábado seguinte se renovava o colóquio de crítica e reflexão sobre os temas mais variados: religião, educação,economia, política, esportes, urbanidade e questões palpitantes da sociedade do Juazeiro. Os três intelectuais tinham na tela de observação o mundo do Juazeiro, cheio de coisas boas e coisas ruins, pois, como dizia Padre Murilo, "Juazeiro é um mundo". . Esses encontros, na mais absoluta descontração, serviam também para abastecer Padre Murilo de inspirações para suas pregações e suas crônicas no rádio, onde explorava, mais regularmente, temas ligados às virtudes teologais - fé, esperança e caridade - que, segundo a própria Igreja Católica "têm como origem, motivo e objeto o próprio Deus" e às virtudes humanas que nos ensinam a conviver bem com as outras pessoas na família, na comunidade e no mundo. Como os pastores evangélicos fazem hoje usando a comunicação para alavancar a expansão de suas Igrejas, inclusive no Juazeiro, onde a maioria absoluta é de católicos, considerado o maior centro do catolicismo popular da América Latina, Padre Murilo já usava o rádio, há 50 anos, para fazer sua catequese. Além desses encontros em sítio da Palmeirinha, Padre Murilo costumava viajar de carro pelo Nordeste, visitando como convidado, sobretudo Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia, com os dois radialistas. Eles testemunharam multidões festejando a presença de Padre Murilo como verdadeira celebridade, incluindo muita vibração, aplausos, fotos e autógrafos. Daniel e Pimentel não esquecem a visita que fizeram com Padre Murilo em 1976 a Piranhas, pequena e linda cidade histórica de Alagoas com casinhas coloridas às margens do rio São Francisco: mais de 100 mil pessoas, sob um sol de rachar, aguardando Padre Murilo para ouvir sua pregação. Perplexo, o Vigário do Nordeste ficava meio encabulado, mas atendia a multidão com paciência e carinho. Em poucos minutos, já se sentia em casa, como se estivesse no seu amado Juazeiro,diante de milhares de romeiros lotando a Matriz de Nossa Senhora das Dores. Nessas viagens, os dois radialistas testemunharam eventos surpreendentes e históricos: nunca um bispo da Igreja Católica reuniu tamanhas multidões, isso era um privilégio do Vigário do Nordeste como já havia sido do Padre Cícero. Tudo isso era um grande estimulo para suas crônicas diárias no rádio que ultrapassavam as fronteiras do Cariri e se irradiavam pelo interior do Nordeste. Nas ondas do rádio, ele seguia o roteiro da Populorum Progressio, pregando o "desenvolvimento integral" do homem. Com sua vocação para a radiofonia e se tivesse tido uma vida mais longa, não é exagero imaginar Padre Murilo como diretor-fundador da Rádio Catedral do Nordeste, emissora que ele, seguramente, conseguiria sob responsabilidade mantenedora da Paróquia de Nossa Senhora das Dores, para melhor cumprir sua missão catequética junto aos romeiros nordestinos Eu não tive o privilégio de Daniel Walker e José Carlos Pimentel, mas sempre dediquei ao Padre Murilo admiração e respeito, sobretudo por sua garra, determinação, coragem e sabedoria na defesa do Padre Cícero contra uma Igreja implacavelmente perseguidora. Meus contatos com ele no Juazeiro do Meu Tempo eram esporádicos e apenas profissionais (entrevistas, reportagens, gravações, etc). Em 1973, como Editor-Chefe da Rede Globo Nordeste(Recife), escalei-me para cobertura das romarias de novembro no Juazeiro. Fui recebido com atenção e gentileza em sua casa paroquial com meu companheiro cinegrafista Jefferson de Albuquerque.. Fizemos uma gravação dele sobre o crescimento das romarias e da devoção ao Padre Cícero. Depois, com sua autorização subimos na torre da matriz, onde gravamos belas imagens panorâmicas dos romeiros nos arredores da igreja.Como era muito material, de volta ao Recife, fiz duas edições. Uma saiu no Jornal Nacional e outra no Fantástico.Ele agradeceu e eu fiquei feliz por ter dado destaque nacional ao Juazeiro. Foi ele quem me apresentou ao público do Memorial Padre Cícero no lançamento, em 1990, do meu primeiro dos 14 livros até agora publicados, "Padre Cícero - O Poder de Comunicação" - prefaciado pelo escritor Marcos Vilaça, da Academia Brasileira de Letras. Conservador e moderno, Padre Murilo de Sá Barreto acreditava e confiava no poder celestial de Deus para o Progresso dos Povos, mas também acreditava e confiava no poder mágico do Rádio para a transformação e o progresso do Juazeiro e para conforto e esperança dos romeiros do Nordeste. Assim como se fez romeiro, identificando-se plenamente com a simplicidade dos romeiros, inclusive no uso do chapéu de palha em celebrações na Basílica de Nossa Senhora das Dores, Padre Murilo também se fez companheiro admirado e querido pelos radialistas do Juazeiro do Meu Tempo e de outros tempos. Gente finíssima. Alô, Padre Murilo, Juazeiro inteiro sente a sua falta que é enorme. É uma saudade sem fim cercando o coração de todo mundo. Até seu gato de estimação, MIMI, aquele bonitão, biotipo alemão, lindo, foi visto sentadinho no batente da porta central da Basílica, pensativo. Parecia estar esperando sua volta ou, talvez, querendo ouvir sua voz, pelo menos no rádio...Fique na Santa e Eterna Paz!

*Jota Alcides, jornalista e escritor, é autor de "Padre Cícero segundo Mestre Athayde " e "Padre Cícero - O poder de comunicação".